A Épica Libertadora da Pintura
A paisagística é o tema central da arte brasileira desde quando os artistas holandeses, capitaneados por Frans Post, documentaram e interpretaram a fauna e a flora da várzea pernambucana. Durante o século XIX, os artistas oriundos da missão francesa de 1816 tiveram a difícil missão de captar a exuberante luminosidade tropical com uma paleta de cores discretamente europeia, temperada e repleta de meios tons. Ainda assim alguns registros pictóricos de qualidade acentuam a presença de uma paisagem brasileira que se impõe na retina e na sensibilidade de grandes artistas. Os modernistas da primeira geração, em especial Tarsila do Amaral, definiram as bases de uma cor brasileira, rural, caipira e ao mesmo tempo ingênua e sofisticada. Di Cavalcanti e Portinari acentuaram a temática nacionalista definindo formas e paisagens hoje incorporadas no repertório comum brasileiro. E assim, a história da arte brasileira caminha até os dias de hoje refletindo as mudanças humanas, sociais e econômicas do país.
Fabiana Gabaskallás, insere-se nessa corrente temporal com pinturas de grandes dimensões nas quais a épica define o conceito e o gesto. Para a artista a pintura é antes de tudo uma ponte entre os tempos, um ato de coragem que abraça a história e projeta o futuro. Ela pinta os seus desejos e medos, mas pinta também e principalmente, um mundo em que vivemos e o papel da pintura, território do gesto e da matéria diante de um mundo virtual e tecnológico. Gabas Kallás acentua a importância da fisicalidade, da misteriosa equação entre o tempo e o espaço que une a pintura, a dança e o teatro. A sua atuação profissional como médica permite que ela compreenda a história e a genética; a sua pintura reflete o presente a partir das referências e influências do seu passado. O pintor é, e sempre será, um elo da corrente que perpassa o tempo e constrói a história.
Diante dessas pinturas, encontramos a vastidão das imagens, seres e coisas que narram histórias esquecidas e belezas inauditas. Elas são velhas amigas de caminhada, Géricault e Delacroix, Monet, Parreiras, Kiefer, balsas, mares revoltos, farrapos, anseios libertários, etnias obliteradas, tropicálias, civilizações, culturas, verdades reveladas, alegorias que confrontam o poder constituído. Esse é um mundo de cores e imagens que povoam as telas da artista. Elas são marcos visuais que se apropriam do passado para projetar um futuro mais justo e mais harmônico. Por isso, em meio aos pavores do mundo atual, em seus desertos e suas insanidades, a arte reina e resiste nas florestas, nos ensinamentos obliterados pela exclusão. Gabas Kallás trabalha no silêncio do seu ateliê, mas a sua pintura é um vozerio coletivo em favor da beleza e do encantamento como instrumento de valorização da vida e dos seres.
— Marcus de Lontra Costa
(São Paulo. Fevereiro, 2024)